Além desse número estarrecedor, mais da metade da população, ou 116,8 milhões, vive com algum tipo de insegurança alimentar e nutricional
Por: João Vitor Santos / Instituto Humanitas Unisinos
Os dados sobre o aumento da fome no país são estarrecedores. “Segundo o ‘Inquérito da Insegurança Alimentar e Nutricional no Contexto da Pandemia da Covid-19’, que é o estudo mais atual no país e que já foi detalhado recentemente nessa página, em dois anos a fome praticamente dobrou, tendo, em dezembro de 2020, mais de 19 milhões de brasileiras e brasileiros (9% da população) que não têm o que comer, e mais da metade da população, ou 116,8 milhões, vive com algum tipo de insegurança alimentar e nutricional”, observa Juliano Ferreira de Sá, presidente do Conselho de Segurança Alimentar do Rio Grande do Sul, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
É evidente que a situação da pandemia fez esse quadro piorar, mas Juliano alerta sobre a importância de reconhecer que esse quadro vem piorando muito antes de o novo coronavírus fazer a primeira vítima na China. Aliás, lembra que a fome sempre foi uma realidade no Brasil. “Mas somente na década de 1940, com a contribuição dos estudos e pesquisas de Josué de Castro, ela passa a ser tratada como um problema social”, completa. Com avanços nos anos 1990 e a efetivação de políticas públicas a partir dos anos 2000, um cenário de desmontes vem ocorrendo. “O país entre 2016 e 2018 retrocede a um patamar de 14 anos atrás. O IBGE, em 2018, antes da pandemia já mensurava mais de 10 milhões de pessoas passando fome no Brasil”, frisa.
Para Juliano, o desmonte e a falta de políticas públicas são as principais causas da fome. Mas quem se aproxima daqueles que não têm o que pôr na mesa, descobre muito mais. “Nas diversas ações que acompanhamos, nos mais diferentes lugares, a principal mensagem que os rostos das pessoas em situação de vulnerabilidade social passam é a de que ninguém gosta de ganhar cestas básicas”, relata. E acrescenta: “a impossibilidade de colocar alimentos na mesa de suas famílias acaba lhes tirando a dignidade, por isso é fundamental para quem doa e para quem está engajado nas ações de solidariedade ter a consciência de que cestas básicas doadas pela sociedade civil não são assistencialismo e nem política pública, são ações emergenciais em defesa da vida humana”.
Em paralelo, Juliano diz que é preciso lutar pelo restabelecimento dessas políticas. Como quem tem fome não pode esperar, destaca ações solidárias que quase sempre têm a agricultura familiar como principal parceira. “Majoritariamente os alimentos doados pelo Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome vieram de agricultores familiares, camponeses, pequenos agricultores e assentados da reforma agrária”, destaca. E provoca: “não vi nenhuma ação de distribuição de alimentos por parte de fazendeiros ou de entidades ligadas ao agronegócio. Mais uma vez, num momento de tamanha necessidade, temos visto safras recordes de grãos e aumento dos lucros da indústria agroalimentar”.
Juliano Ferreira de Sá é presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul – Consea-RS. Possui mestrado em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, graduação em Gestão Ambiental pela Universidade do Norte do Paraná – Unopar. Ainda é assessor parlamentar e secretário executivo da Frente Parlamentar Gaúcha em Defesa da Alimentação Saudável da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, coordenador da Feira Orgânica da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.
Confira a entrevista
IHU On-Line – O fantasma da fome voltou a assombrar o Brasil em tempos pandêmicos. Quais os fatores que nos levam a esse cenário? Em que medida isso é uma consequência apenas da pandemia?
Juliano Ferreira de Sá – A fome no Brasil não é novidade, mas somente na década de 1940, com a contribuição dos estudos e pesquisas de Josué de Castro, ela passa a ser tratada como um problema social. A luta de Betinho [sociólogo Herbert de Souza] na década de 1990 iniciava uma grande cruzada contra a fome no país, o que mobilizou a sociedade civil, resultando na criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea em 1993, que dois anos depois foi desativado e somente reativado em 2003, no lançamento do Programa Fome Zero.
O Consea passou a ter um papel de protagonismo na elaboração e no controle social das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional articuladas, como programas de transferência de renda, valorização do salário mínimo, compras institucionais de alimentos da agricultura familiar e outros, que fizeram com que no ano de 2014 o Brasil saísse do Mapa da Fome do Mundo da Organização das Nações Unidas – ONU, quando 98,3% da população brasileira vivia em situação de segurança alimentar e nutricional – o que significa que tecnicamente o país havia extinguido a fome.
Sete anos depois, não é difícil de entender como retrocedemos a uma situação de calamidade no que se refere à volta da fome e da miséria. A crise econômica mundial do período seguinte exigiu políticas de austeridade justamente quando os países deveriam estar garantindo políticas públicas de proteção, principalmente para as pessoas em situação de maior vulnerabilidade social.
Retrocessos
No ano de 2016, o Brasil passa por um período de turbulência político-institucional que resultou numa drástica mudança de modelo de gestão com o fim de ministérios estratégicos para a segurança alimentar e nutricional, como, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Social – MDS e o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, bem como o início do desmonte de políticas fundamentais como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e diversos programas sociais.
Sobretudo, a aprovação da PEC 95/2016 do Teto dos Gastos Públicos, conhecida como a PEC da Morte, no qual congela os investimentos em políticas públicas e sociais pelo período de 20 anos, o que em pouco tempo revelou um resultado desastroso, fazendo com que o país entre 2016 e 2018 retrocedesse a um patamar de 14 anos atrás. O IBGE, em 2018, antes da pandemia já mensurava mais de 10 milhões de pessoas passando fome no Brasil.
Pandemia
A pandemia da Covid-19 agrava este cenário já em curso, que, combinado com uma política negacionista e ausência de políticas públicas, fez os números piorarem ainda mais. Segundo o “Inquérito da Insegurança Alimentar e Nutricional no Contexto da Pandemia da Covid-19”, que é o estudo mais atual no país e que já foi detalhado recentemente nessa revista, em dois anos a fome praticamente dobrou, tendo, em dezembro de 2020, mais de 19 milhões de brasileiras e brasileiros (9% da população) que não têm o que comer, e mais da metade da população, ou 116,8 milhões, vive com algum tipo de insegurança alimentar e nutricional. Esse cenário piora ainda mais em lares chefiados por mulheres, negros, pardos e por pessoas com baixa escolaridade.
IHU On-Line – Como a fome vem incidindo na realidade gaúcha? Quem são os maiores atingidos pela insegurança alimentar nestes tempos?
Juliano Ferreira de Sá – Mesmo que a Região Sul do país, segundo o Inquérito da Insegurança Alimentar, seja a menos atingida, pode-se perceber que a fome e a miséria chegaram ao Rio Grande do Sul também. Visualmente há um aumento significativo de pessoas em situação de rua, em especial nas cidades maiores, bem como exploração de trabalho infantil e a presença de crianças em semáforos, vendendo doces ou pedindo dinheiro.
Nas periferias urbanas, que geralmente passam na invisibilidade, a situação é ainda pior, principalmente pelo desemprego e pela falta de renda. Também chama a atenção a ausência de políticas públicas para os povos indígenas, quilombolas, migrantes, ciganos, povos tradicionais de matriz africana e pescadores profissionais artesanais, que, além do atual contexto, sofrem historicamente com o preconceito.
A fome e a miséria não são problemas exclusivos das populações urbanas, pois segundo o último censo agrícola, antes ainda da pandemia, já tínhamos 20% de agricultores e agricultoras familiares vivendo em situação de extrema pobreza no RS. Não há números oficiais ainda, porém estima-se que, após estiagens recentes, pandemia e a diminuição de mercados institucionais, a situação tenha piorado ainda mais.
IHU On-Line – O que é preciso para afastar a fome hoje, de imediato? E no médio e longo prazo, que diretrizes devem ser adotadas?
Juliano Ferreira de Sá – Somente através de políticas públicas articuladas e integradas é que conseguiremos enfrentar a fome, desde renda básica decente, em nível nacional e estadual, concomitantemente, até políticas de fortalecimento da rede de assistência social através de compras governamentais da agricultura familiar. Os especialistas da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO recomendam a valorização do comércio e dos agricultores locais como estratégia para minimizar os impactos da pandemia.
O governo federal deveria urgentemente aumentar o valor e o público beneficiado com o Auxílio Emergencial, bem como a inclusão imediata das mais de 2 milhões de pessoas que aguardam na fila de espera do Programa Bolsa Família. Especialistas estimam a necessidade de investimento imediato de R$ 1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, que, além de proteger agricultores familiares, é um programa de formação de estoques – o que implica diretamente na regulação dos preços dos alimentos, além de oferecer alimentos saudáveis e de qualidade à rede de assistência social.
Também é preciso que o governo federal atualize os valores de repasses aos estados e municípios através do Programa Nacional da Alimentação Escolar – Pnae, que é reconhecido mundialmente como nossa maior política de segurança alimentar e nutricional em longevidade. A alimentação escolar para muitas crianças e jovens brasileiros é a principal refeição do dia e no mínimo 30% dos alimentos devem ser adquiridos da agricultura familiar.
Durante a pandemia o programa foi autorizado a garantir a distribuição dos alimentos no formato de kits de alimentação para a família dos estudantes, porém muitos estados e municípios optaram por não executar a política ou não cumpriram a legislação que obriga o percentual mínimo de compras da agricultura familiar. Assim, é necessário atualizar e aumentar o valor dos repasses aos estados e municípios, bem como campanhas de estímulo às compras da agricultura familiar.
Políticas estaduais
Aqui no estado, o Consea vem, desde o início da pandemia, recomendando ao governador e secretários ações emergenciais de políticas públicas como renda básica estadual, criação de um PAA estadual, compras coletivas governamentais da agricultura familiar e economia solidária – o que é autorizado pelo Decreto N.° 50.305/2013, estruturação de equipamentos públicos como restaurantes e cozinhas populares.
Além disso, temos exigido do governo estadual o funcionamento da Câmara Intersecretarias de Segurança Alimentar e Nutricional – Caisan, que é parte importante do Sistema Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional – Sisan-RS e que tem o papel de articular as ações integradas entre o conjunto do governo no que se refere à segurança alimentar e nutricional. Lamentavelmente a Caisan deixou de funcionar no dia 1° de janeiro de 2019.
IHU On-Line – O Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul – Consea-RS tem realizado uma série de ações para atender de forma imediata quem tem fome. O que essas ações lhe tem revelado?
Juliano Ferreira de Sá – No início da pandemia, com o objetivo de ampliar o número de entidades e atores sociais envolvidos na luta contra a insegurança alimentar e nutricional, o Consea criou o Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome. O Comitê vem sendo coordenado pelo Consea, pela Cáritas Regional do Rio Grande do Sul e pela Ação da Cidadania – RS, que, além de ter incentivado a criação de diversos comitês locais em municípios, bairros e vilas, graças à solidariedade da sociedade civil, já arrecadou e distribuiu mais de 500 toneladas de alimentos.
Esse montante beneficiou mais de 40 mil famílias em regiões periféricas, comunidades indígenas, quilombolas, pescadores, ciganos, migrantes, povos tradicionais de matriz africana e músicos e artistas populares. Porém, as doações tiveram quedas recentemente. No geral, percebemos uma diminuição em torno de 70% das contribuições às diversas iniciativas da sociedade civil. Isso é mais um indicador de que a ausência das políticas públicas de que falávamos anteriormente tem impactado cada vez mais a população. Assim, muita gente que doava já não consegue mais, logo, diminuiu cada vez mais a capacidade de atuação das redes de solidariedade organizadas pela sociedade civil.
Por isso, quem puder doar, faça sua contribuição para que o Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome possa levar comida para quem tem fome.
Para doar ao Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome:
PIX – Chave: CNPJ 33654419001007
Ou
Banco do Brasil
AG 1248-3 Conta Corrente 55450-2
CNPJ 33654419001007
Os valores doados serão revertidos em cestas básicas da agricultura familiar do RS.
Para doação de alimentos, contatar pelo WhatsApp +55 51 8318-8241.
Quem tem fome, tem pressa!
IHU On-Line – Ao mesmo tempo que se faz necessária a mobilização de organizações da sociedade civil para aplacar a fome, vemos poucas ações concretas do poder público estatal. Em que medida as ações solidárias acomodam o debate e as ações do Estado acerca das políticas públicas de assistência social?
Juliano Ferreira de Sá – Como disse acima, só enfrentaremos e venceremos a fome com políticas públicas. Com a ausência delas, a situação só não é pior graças à mobilização e à solidariedade da sociedade civil. A situação de desespero é tanta que a população já não tem forças para cobrar políticas públicas dos governantes, então as ações de solidariedade acabam de certa forma “aliviando” a situação de quem tem fome. Mas também a responsabilidade dos governos, por isso, temos dito que a solidariedade é para ajudar na diminuição do sofrimento e que políticas públicas por parte do poder público federal, estaduais e municipais são imprescindíveis.
Nas diversas ações que acompanhamos, nos mais diferentes lugares, a principal mensagem que os rostos das pessoas em situação de vulnerabilidade social passam é a de que ninguém gosta de ganhar cestas básicas. A impossibilidade de colocar alimentos na mesa de suas famílias acaba lhes tirando a dignidade, por isso é fundamental para quem doa e para quem está engajado nas ações de solidariedade ter a consciência de que cestas básicas doadas pela sociedade civil não são assistencialismo e nem política pública, são ações emergenciais em defesa da vida humana.
IHU On-Line – Ainda sobre as ações de solidariedade, vimos que muitas delas tiveram como protagonistas pequenos produtores rurais ligados à agricultura familiar. Para além das ações solidárias, qual o papel do pequeno produtor familiar no combate à fome?
Juliano Ferreira de Sá – Majoritariamente os alimentos doados pelo Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome vieram de agricultores familiares, camponeses, pequenos agricultores e assentados da reforma agrária. Somente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, desde o início da pandemia, já distribuiu mais de 4 mil toneladas de alimentos no Brasil, sendo 400 toneladas somente aqui no RS.
Esses movimentos sociais e agricultores familiares, que também estão sofrendo com a falta de políticas públicas, estão dando um grande exemplo de solidariedade e de soberania alimentar, pois em meio a tantas tristezas sentidas na pandemia, o que os agricultores familiares e assentados ainda têm é condições de partilhar o que a natureza e o fruto de seu trabalho lhes dão.
Não vi nenhuma ação de distribuição de alimentos por parte de fazendeiros ou de entidades ligadas ao agronegócio. Mais uma vez, num momento de tamanha necessidade, temos visto safras recordes de grãos, aumento dos lucros da indústria agroalimentar, porém falta empatia e solidariedade destes setores.
IHU On-Line – Outra discussão que se tem é sobre o papel da agroecologia no combate à insegurança alimentar. Esse modo de produção pode ser eficaz para enfrentar a fome?
Juliano Ferreira de Sá – Sem dúvidas. A agroecologia é uma ciência e um modelo de produção que parte do pressuposto da relação de equilíbrio da natureza com a intervenção humana. Na agroecologia, a agricultora e o agricultor sabem que são parte da natureza e que é só a partir da biodiversidade de cada território, respeitando as dimensões culturais, regionais, étnicas e de gênero que é possível produzir alimentos de forma saudável e sustentável.
O modelo de produção do agronegócio, em larga escala, com pacotes tecnológicos que retiram a autonomia dos agricultores em relação às sementes, promove a monocultura e a morte de biodiversidades em nome do lucro. Em direção contrária, agricultores ecologistas exercem uma relação holística com a natureza, preservando ao máximo as biodiversidades, sem uso de agrotóxicos e, ao mesmo tempo, em pequenos espaços conseguem produzir diversidade de alimentos, que garantem o sustento da sua família e ainda geram trabalho e renda.
IHU On-Line – De outro lado, como o consumo elevado de agrotóxico para produção agrícola pode contribuir para a insegurança alimentar?
Juliano Ferreira de Sá – Sim, o Brasil já vem há anos se destacando como campeão mundial no consumo de agrotóxicos, tendo o RS como um dos estados que mais consome veneno no país. Com o atual governo federal e a pandemia, a situação se agravou muito, e nunca antes na história deste país se liberou tantos novos agrotóxicos em tão pouco espaço de tempo.
Muitas pessoas ingerem veneno através do resíduo dos agrotóxicos nos alimentos, e a maioria delas não sabe que está ingerindo. Especialistas alertam para o aumento de doenças crônicas não transmissíveis causadas por problemas de má alimentação, muitas dessas em decorrência de intoxicação por agrotóxicos. Além disso, os agrotóxicos também resultam em problemas, como depressão, câncer, autismo e a morte.
Por isso, o Consea-RS, ao longo de sua existência, vem debatendo, recomendando e alertando para o perigo do uso de agrotóxicos, sobretudo quanto ao aumento descontrolado de uso de venenos. Essa realidade fere o Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA, garantido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como os princípios e diretrizes da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN, 2006).
IHU On-Line – O senhor tem acompanhado de perto as discussões na Assembleia gaúcha acerca de projeto que quer liberar o uso de novos tipos de agrotóxicos no campo. Gostaria que nos atualizasse sobre como andam esses projetos e quais os riscos se forem aprovados.
Juliano Ferreira de Sá – O Rio Grande do Sul tem uma legislação pioneira no controle dos agrotóxicos, mais restritiva do que a legislação federal, que proíbe o uso e comercialização de agrotóxicos não autorizados pelo país de origem. Isso graças à mobilização da sociedade civil e ambientalistas depois de um grande desastre ambiental provocando a mortandade de peixes no rio Guaíba, em decorrência de uso de agrotóxicos nas lavouras da região metropolitana de Porto Alegre.
Para nossa surpresa, em novembro de 2020 o governador Eduardo Leite enviou para a Assembleia Legislativa em regime de urgência o Projeto de Lei N.° 260/2020, que altera a lei estadual, flexibilizando para permitir o uso de agrotóxicos proibidos em seu país de origem. Nos surpreendemos primeiro pelo regime de urgência, que tira qualquer possibilidade de um debate profundo com especialistas e toda a comunidade sobre o assunto, além de que ficamos surpresos pela postura do governador em buscar equiparar o RS ao Brasil – que recentemente tem a pior imagem possível sobre a responsabilidade ambiental na comunidade internacional, projetando para o estado um verdadeiro depósito de lixo químico e de venenos de que o mundo todo quer se livrar.
Em poucos dias, mobilizamos virtualmente mais de 240 entidades e organizações que pediram a retirada do regime de urgência e propomos um amplo debate com a população, pesquisadores e especialistas. Como o governo não conseguiu construir consenso em torno do pacote de medidas votado pelo Parlamento no final do ano passado, acabou retirando a urgência e se comprometeu publicamente que não colocaria mais o PL em regime de urgência. Recentemente tivemos a notícia de que o governo planeja novamente pedir o regime de urgência para o Parlamento gaúcho sob argumento de que as entidades já tiveram tempo para debater o projeto, porém o governo não promoveu ou realizou nenhuma discussão ou audiência sobre o tema.
Sem parecer técnico
Além disso, não há Parecer Técnico da Secretaria Estadual da Saúde – SES sobre o tema, o que nos assusta ainda mais. Por isso, as entidades seguem mobilizadas e vigilantes, com audiências públicas e plenárias na modalidade virtual. O Consea-RS, bem como o Conselho Estadual de Direitos Humanos – CEDH-RS, o Conselho Estadual de Saúde – CES-RS e diversos outros conselhos, emitiram recomendações contrárias ao PL N.° 260/2020.
IHU On-Line – O que esses debates na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul acerca da liberação de agrotóxicos revelam sobre o aumento do uso desses produtos em todo o Brasil?
Juliano Ferreira de Sá – Primeiro, que o Parlamento gaúcho, como um todo, deixa a desejar no que se refere a amplo e sério debate sobre o tema. Deputados no geral defendem os interesses de suas categorias, que majoritariamente representam os setores do agronegócio e da indústria dos agrotóxicos. Porém, é muito importante reconhecer e valorizar o papel desempenhado por alguns deputados e deputadas na perspectiva de uma discussão responsável. Os diversos debates, audiências públicas, seminários e eventos propostos por estes parlamentares vêm denunciando os riscos do aumento do uso de agrotóxicos, bem como apresentando propostas concretas de alternativas, em que muitas delas passam pela agroecologia.
Destaco a iniciativa da Frente Parlamentar Gaúcha em Defesa da Alimentação Saudável, que apresentou projetos de lei que pedem a proibição da pulverização aérea, proibição do herbicida 2,4-D – principal inimigo das culturas sensíveis, como uvas, maçãs, azeitonas e mel, além de projeto que pede a rotulagem dos alimentos convencionais que tiveram contato com agrotóxicos em sua produção. Infelizmente, dados os motivos de interesses e compromissos da maioria dos deputados com suas bases e que já citei aqui, projetos como esses não conseguem tramitar e acabam mofando nas gavetas dos relatores.