Querer e não poder
«O Amor de Deus marca o caminho da verdade, da justiça e do bem. Quando nos decidimos a responder ao Senhor: A minha liberdade para Ti, ficamos livres de todas as cadeias que nos haviam atado a coisas sem importância, a preocupações ridículas, a ambições mesquinhas. E a liberdade – tesouro incalculável, pérola preciosa que seria triste lançar aos animais – emprega-se inteira em aprender a fazer o bem. Esta é a liberdade gloriosa dos filhos de Deus» ( Amigos de Deus, n. 38).
Essas palavras de São Josemaria Escrivá, com as quais terminávamos o comentário de «Liberdade:II- Há liberdade sem verdade?», fazem lembrar um conhecido episódio das Viagens de Gulliver, que nos introduzirá na reflexão sobre outra doença da liberdade (Ver «Liberdade: I- Entender a liberdade»).
O protagonista do famoso romance de Jonathan Swift, após ter naufragado nos mares do Sul, arriba a nado a uma terra desconhecida. Exausto, deita-se na relva e, passadas nove horas, ao acordar – como ele mesmo narra – «tentei levantar-me, mas em vão o fiz. Vi-me deitado de costas, notando também que as pernas e os braços estavam presos ao chão, assim como os cabelos. Observei então que muitos cordões delgadíssimos me rodeavam o corpo, dos sovacos às coxas. Só podia olhar para cima».
Não tardou em descobrir que, enquanto dormia, os minúsculos habitantes daquele país, a terra de Líliput, o haviam amarrado com finíssimos, mas sólidos cordões a uma multidão de estacas fincadas na terra. Mesmo fazendo força, não podia libertar-se.
Gulliver amarrado em Líliput é todo um símbolo. Pois é o verdadeiro retrato de muitos rapazes e moças – e adultos! -, que se julgam livres porque não estão mais condicionados ou amarrados por papai, por mamãe nem por ninguém, mas que, na realidade, estão presos por inúmeros fios que eles mesmos fabricaram.
Esses falsos-livres, enquanto se ufanam da sua total independência de ideias e de movimentos, não percebem que centenas de “liliputianos” invisíveis, nascidos da sua falta de caráter, lhes estão amarrando, dia após dia, a cabeça, o coração e a vontade. Parecem livres – libérrimos -, mas são prisioneiros, porque estão atados pelas cordas das suas fraquezas, vícios e defeitos.
Cabeça “presa”
Começam por ter a cabeça presa, porque as poucas ideias que possuem estão acorrentadas às modas, ao que está em voga no ambiente, ao que pensa a cabeça dos outros. – É moda fumar maconha? – Ele fuma. – É moda beber nas festas até cair no chão? – Ela se embriaga. – É moda rir da religião? – Ele ri. – É moda acreditar na reencarnação? – Ela acredita. – É moda o rock satânico? – Ele blasfema e faz que adora Lúcifer. – É moda ir praticamente sem roupa? – Ela vai. A moda os escravizou, a ele e a ela, e são incapazes de pensar e agir com liberdade.
Esses subprodutos do ambiente, essas cabeças de fantoche, movidas pelos cordéis do meio ambiente, não são livres.
Como também não são livres os cristãos sem doutrina, que desconhecem até o catecismo elementar das criancinhas e nem sabem que os Evangelhos são quatro e, no entanto, pontificam com arrogância sobre temas de religião e Igreja, sem perceber que estão algemados pela sua ignorância.
Falta-lhes a todos, como facilmente se percebe, o que é a base primordial do ato livre: a razão madura, o conhecimento da verdade (Ver«Liberdade: -II).
Vontade e coração “presos”
Mas há também outros “liliputianos” invisíveis – defeitos nossos, igualmente – que amarram a vontade e o coração. Para pôr um exemplo corriqueiro, comum, não é raro que alguns digam: “Eu faço o que quero. Acordo quando quiser, não quero que me batam à porta, não me venham com bitolações de pontualidade e horas certinhas de acordar”. Dizem isso e não reparam que um “liliputiano” chamado preguiça já há muito tempo que os tem amarrados com cordões de aço, de maneira que seriam mais sinceros se dissessem: “Eu só consigo acordar quando a preguiça me dá licença; ela me mantém prisioneiro, escraviza-me, não posso acordar quando a inteligência me indica que deveria fazê-lo, nem quando a vontade desejaria; só quando a preguiça consente”.
A mesma coisa poderia dizer-se de inúmeras “liberdades” de que jovens e velhos se gabam. “Liberdade sexual! Nada de restrições moralistas!” – “Liberdade? – poderíamos retrucar -. Seja sincero. Você está tão dominado pelo egoísmo sexual como outros o estão pela droga. Você não é livre! Você é uma pobre marionete dos seus instintos e das suas paixões! Não faz o que quer, mas o que não consegue deixar de fazer. Faz tempo que já não é dono do seu sexo, mas seu escravo”.
Tal outra pessoa é escrava da gula: nunca consegue fazer o regime de alimentação que lhe convém, nem é capaz de deixar de beliscar um prato na copa, nem de assaltar a geladeira fora de horas, nem de comprar constantemente chocolate, balas, chiclete, biscoitos, sorvete por quilo, etc., etc.
Uma outra pessoa – pode ser a mesma, pois não há muitos especialistas de um só vício – nunca chega pontualmente a nada. Atrasa-se na escola, atrasa-se no trabalho, atrasa-se no médico, atrasa-se na excursão, atrasa-se na visita à casa do amigo ou da amiga; atrasa o estudo, atrasa as tarefas, atrasa pôr em ordem os documentos… Uns “liliputianos” chamados moleza e desordem (irmãos gêmeos da preguiça) a trazem dominada e a puxam pela coleira como se fosse um cachorrinho.
Tal outra pessoa está dominada pela vaidade. Não consegue agir livremente, com simplicidade. Tudo nela é artificial, “dependente” do que os outros vão pensar, vão comentar entre si, vão criticar. É escrava da “imagem” que quer apresentar aos outros. E essa enervante dependência acaba sendo como que um choque elétrico constante, que lhe paralisa a liberdade.
Tal outra pessoa – último exemplo – está tão voltada para si mesma, tão apegada aos seus planos, que não consegue sair deles para ajudar a quem lhe pede uma mão, para gastar um tempo cuidando de um doente em casa, para prestar um serviço necessário aos colegas. Fechada em si mesma, amarrada pelo “eu”, deixou de ser livre para amar.
Os exemplos poderiam multiplicar-se até ao infinito. Tentemos examinar-nos sinceramente a nós mesmos, procurando descobrir que cordões nos amarram. Veremos tantos! Descobriremos que estamos envolvidos por uma malha, uma teia, espessa e pegajosa, tecida por uma aranha chamada egoísmo, que é preciso romper.
“A liberdade – diz o Papa João Paulo II – necessita de ser libertada” (Encíclica Veritatis splendor, n. 86). Para sermos livres, precisamos cortar as amarras. E a tesoura que corta os fios chama-se mortificação.
Cortando os Fios
Víamos que a teia de fios finos e fortes que nos envolve é tecida, no fim das contas, pela aranha do nosso egoísmo, com seus múltiplos tentáculos. A única maneira de vencermos o egoísmo é dizer-lhe não.
Sem a negação dos impulsos egoístas, não pode haver afirmação da bondade e do amor que, livremente, nós desejamos. Sem o esforço e o treinamento da mortificação – do autodomínio, praticado com renúncias e sacrifícios -, poderemos querer, mas não vamos poder fazer.
Mais uma vez fica claro que a atitude autêntica não é a do “espontaneísmo” – ir tocando a vida, sem negar nada aos impulsos, desejos e caprichos -, mas a do ideal na cabeça, secundado por uma vontade libertada de amarras (Ver «Liberdade -II»).
Mortificação, sim. Mas, qual? São necessárias muitas, em geral: mortificações pequenas e constantes. Por exemplo:
* Dizer não a detalhes de gula: mais esse chocolate, não; mais esse copo de cerveja, não!
* Dizer não à preguiça que nos faz atrasar, com desculpas esfarrapadas, um dever ou um compromisso (profissional, religioso, familiar), ou nos sugere levantar-nos da mesa de trabalho antes de termos terminado o estudo ou a tarefa começada.
* Dizer não ao egoísmo que nos leva a fazer-nos de surdos quando o pai, a mãe, um irmão, um colega, um amigo, precisam da nossa colaboração.
* Dizer não ao amor-próprio que ferve, querendo retrucar com ira a uma indelicadeza, ou que não quer desistir de uma pequena vingança.
* Dizer não à tentação de sensualidade egoísta, que quer olhar todas as baixarias – nas bancas de jornal, na televisão, na Internet -, que só nos degradam.
* Dizer não à vontade de mexericar, de criticar, de meter a colher numa conversa onde se fala mal dos outros.
* E muitos outros não, que devemos ter a coragem de dizer a tudo aquilo que é falso e errado, para poder dizer sim ao bem e à verdade.
João Paulo II, depois de dizer que a liberdade tem que ser libertada, acrescenta: “Cristo é o seu libertador”.
O cristão com as características do homem ou da mulher autenticamente livres que estamos descrevendo, entende perfeitamente essa breve frase. É junto de Cristo, e com a graça dEle – sem a qual não teríamos a força de que necessitamos (cf. Jo 15, 5) -, que aprendemos a descobrir a verdade, a escolher com autenticidade e a mortificar-nos com generosidade, a fim de podermos correr livremente pela estrada do amor e do bem.
Fonte: Padre Francisco Faus – Adaptação de um trecho do livro Autenticidade & Cia