Um coração que “vê”
São João conta, no seu Evangelho, que Jesus foi convidado, juntamente com sua Mãe, a uma festa de bodas em Caná. Era recente ainda a vocação dos Apóstolos, mas já acompanhavam o Mestre e, conforme o costume da época, foram convidados também para o casamento (cf. Jo 2, 1-11).
A cena é conhecida. Num dado momento da ruidosa festa campesina, fica faltando vinho. Ninguém o percebe. Ninguém, a não ser Maria. Com delicada intuição, pressente que a alegria dos esposos pode ficar toldada por uma imprevidência. Maria faz “seu” o problema, assume-o com sensibilidade materna, com um interesse impregnado de coração. E não hesita em falar confiadamente a Jesus: Eles não têm vinho.
As suas palavras não são um simples comentário preocupado, mas encerram um discreto pedido. Assim o entende Jesus, quando lhe responde: Que importa isso a mim e a ti, mulher? Ainda não chegou a minha hora.
A nossa lógica bem-comportada subscreveria as palavras de Jesus. Elas têm a aparência de uma compreensível e amável censura a um pedido saído do coração da mãe, mas pouco razoável.
Maria, no entanto, não as entende assim. E Ela é quem tem a sintonia mais perfeita com a alma do Filho. Por isso, não duvida em solicitar imediatamente aos que servem: Fazei tudo o que Ele vos disser. Mostra saber que será escutada, sem que para isso possa ser obstáculo a dificuldade mencionada por Jesus: “Não chegou a minha hora”.
O atendimento de Jesus ao pedido da Mãe não demora. Sob o olhar sorridente de Maria, Cristo manda aos servidores que encham de água seis grandes recipientes de pedra. Ordena-lhes depois que tirem a água já convertida em vinho e a apresentem ao mestre-sala, que não sai do seu assombro por julgar que os donos da festa tinham deixado o bom vinho guardado até agora.
A cena termina com um comentário de João: Este primeiro milagre, fê-lo Jesus em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele. (Jo 2, 11).
Jesus sempre escuta Maria
Sem dúvida, há uma “mensagem” muito clara nesse milagre. É patente que Maria está ativamente presente no começo do ministério público de Cristo, e está presente de uma forma central, não marginal. Prestemos atenção:
● É por intercessão dEla que Cristo adianta misteriosamente a “hora” de iniciar os seus milagres, que serão “sinais” (cfr. Jo 6, 26) da sua divindade e testemunhos visíveis da veracidade da sua doutrina.
● É pela intervenção dEla que Cristo realiza o primeiro sinal que fará com que os discípulos creiam em Jesus.
● Finalmente, manifesta-se nesse instante a disposição de Jesus de acolher todos os pedidos que, mesmo em coisas pouco relevantes – “não têm vinho” –, cheguem a Ele por intermédio da solicitude da Mãe, que se mostra amorosamente atenta às necessidades espirituais e materiais dos homens, seus filhos.
«Maria – comenta a propósito desta cena São João Paulo II – põe-se de permeio entre o seu Filho e os homens na realidade das suas privações, das suas indigências, dos seus sofrimentos. Põe-se de permeio, isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal pode – ou antes, “tem o direito de” – fazer presentes ao seu Filho as necessidades dos homens (…) E não é tudo: como Mãe, deseja também que se manifeste o poder messiânico do Filho, ou seja, o seu poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras humanas, a libertar o homem do mal que, sob diversas formas e diversas proporções, faz sentir o peso na sua vida»[1].
Contemplando esta passagem do Evangelho, a imaginação evoca algumas das cenas mais simples da piedade popular, que por vezes escandalizam os “sábios”. Como num filme, focalizamos mentalmente os rostos enxutos, requeimados pelo sol do sertão, de um grupo de romeiros que acaba de descer do ônibus na esplanada do Santuário de Aparecida. Os devotos, entrando na basílica, cravam o olhar esperançado no retrato da Mãe, a pequenina imagem de barro escurecido. E, de cada coração, eleva-se uma súplica: pelas necessidades cotidianas, pela saúde, pela volta ao bom caminho do marido, de um filho… “Dai-nos a bênção, ó Mãe querida!” Eles sabem por dentro, têm a certeza, de que – assim como em Caná – a Virgem Santa não deixará de dizer ao Filho: “Não têm…”. E o Filho a atenderá, o Filho lhe “obedecerá”… Não é evidente a sintonia existente entre a sincera devoção popular e o Santo Evangelho?
Em Caná, Cristo disse com atos, mais expressivos do que as palavras, que, na realização da sua obra salvadora em favor dos homens, deseja que ocupe um lugar de destaque a mediação maternal de sua Mãe. Não era necessário que fosse assim, mas Deus quis que assim fosse.
Maria tem verdadeiramente uma função de mediação materna entre Cristo e os homens. Não é certamente uma função autônoma, nem obscurece o fato incontestável de que Jesus Cristo é o único Mediador propriamente dito entre Deus e os homens (cf. I Tim 2, 5). Mas, mesmo assim, fica em pé a existência de uma autêntica mediação de Maria, subordinada mas entranhadamente unida à mediação de Cristo[2].
A mediação de Maria está nos desígnios de Deus. Não foi imaginada pela devoção dos cristãos, em épocas mais ou menos tardias. Pelo contrário, foi sendo descoberta pela fé, cada vez com maior profundidade, como um tesouro escondido, o que é muito diferente.
Bem entendia esta verdade São Bernardo, o “trovador da Virgem”, quando pregava que Maria é «o aqueduto que, recebendo a plenitude da própria fonte do coração do Pai, no-la faz acessível… Com o mais íntimo, pois, da nossa alma, com todos os afetos do nosso coração e com todos os sentimentos e desejos da nossa vontade, veneremos Maria, porque esta é a vontade daquele Senhor que quis que tudo recebêssemos por Maria»[3].
O conselho de Maria
Antes de concluirmos o comentário às bodas de Caná, detenhamo-nos por uns instantes a olhar outras riquezas dessa cena.
Tem sido observado com razão que nessa passagem de Caná se encontram as únicas palavras dirigidas por Maria aos homens que o Evangelho registra: Fazei tudo o que Ele vos disser (Jo 2, 5). Aí está o sentido da mediação de Maria: levar as almas para Cristo, mover os corações dos homens a aderir à vontade de Cristo e a “fazê-la” de fato: “tudo o que Ele vos disser”.
Ao mesmo tempo, aí se compreende qual é o eixo da verdadeira devoção a Nossa Senhora, e o teste da sua autenticidade. A autêntica devoção a Maria sempre conduz a Cristo. É função do amor maternal de Maria “gerar” constantemente “irmãos” de seu Filho, que se disponham a viver até às últimas consequências a Verdade e a Vida que Jesus lhes oferece.
Por isso, a devoção a Maria Santíssima não só não afasta ou desvia as almas da união com Cristo pela fé e pelo amor – e nisso reside a essência da vida cristã –, mas a facilita sobremaneira, tornando-a mais acessível e mais suave, e também mais eficaz. «A Jesus, sempre se vai e se “volta por Maria»[4]”.
«A nossa alma – diz São Luís Maria Grignion de Montfort – só encontrará Deus em Maria… Só Deus habita nela e, longe de reter uma alma para si, Ela – muito ao contrário – a impele para Deus e a une a Ele”[5].
Trecho do livro de F.Faus Maria, a Mãe de Jesus
[1] Encíclica Redemptoris Mater, n. 21
[2] Constituição Lumen gentium, n. 62
[3] São Bernardo, Sermo in Nativitate B. V. Mariae; in Migne, Patrologia Latina, 183, 437, ns. 4 e 7;].
[4] São Josemaría Escrivá, Caminho, 6ª. ed., Quadrante, São Paulo, 1983, n. 495.
[5] Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, Ed. Secrétariat de Marie Médiatrice, 4ª. ed., Lovaina, 1952, cap. I, art. 1.