“Um pastor não se compreende sem um rebanho, que está chamado a servir. O pastor é pastor de um povo, e o povo deve ser servido a partir de dentro” (Papa Francisco).
A Constituição Dogmática Lumen Gentium apresenta a Igreja como Povo de Deus. A bem da verdade, a imagem da Igreja como Povo de Deus tem suas raízes nas Sagradas Escrituras, como atestam os Livros do Gênesis, Deuteronômio, Êxodo, bem como os Livros dos Profetas Ezequiel, Isaías, Jeremias, entre outros. Mas em particular, em seu capítulo II, esta importante Constituição do Concílio Vaticano II descreve os pormenores deste vínculo. Diz no número 13: “O Povo de Deus encontra-se entre todos os povos da terra, já que de todos recebe os cidadãos, que o são dum reino não terrestre mas celeste. Pois todos os fiéis espalhados pelo orbe comunicam com os restantes por meio do Espírito Santo, de maneira que «aquele que vive em Roma, sabe que os indianos são membros seus». Mas porque o reino de Cristo não é deste mundo, a Igreja, ou seja o Povo de Deus, ao implantar este reino, não subtrai coisa alguma ao bem temporal de nenhum povo, mas, pelo contrário, fomenta e assume as qualidades, as riquezas, os costumes e o modo de ser dos povos, na medida em que são bons; e assumindo-os, purifica-os, fortalece-os e eleva-os (…). Este carácter de universalidade que distingue o Povo de Deus é dom do Senhor; por Ele a Igreja católica tende eficaz e constantemente à recapitulação total da humanidade com todos os seus bens sob a cabeça, Cristo, na unidade do Seu Espírito”.
Dando continuidade ao estudo da constituição conciliar, o sacerdote gaúcho, padre Gerson Schmidt*, fala sobre “A Igreja como Povo de Deus”:
“O Concílio Vaticano II invertia a pirâmide, definindo a Igreja como todo o Povo de Deus e não somente como hierarquia eclesiástica. A Igreja da Lumen Gentium é um Povo de Deus em busca da santidade. A imagem bíblica de Povo de Deus, preferida à imagem de Corpo de Cristo, destaca a dimensão histórica, enfatizando a caminhada do povo de Deus pelo deserto. De fato, a historicidade da Igreja vem destacada por essa imagem e sua abertura para a história humana, pois a Igreja avança em direção à casa do Pai no mundo e não fora dele. E o Concilio Vaticano II não quis ignorar o mundo de então, pelo contrário, entrar em diálogo com o mundo de hoje, como, aliás, o demonstra a Gaudium et Spes. Mas a Igreja é um Povo de Deus santo, mas em busca da santidade. Santo, porque Deus torna a Igreja santa, mas, ao mesmo tempo, deve realizar em sua própria vida a santidade de Deus.
Em uma importante carta dirigida pelo Papa Francisco ao cardeal MARC OUELLET, presidente da Comissão Pontifícia para a América Latina e prefeito da Congregação dos bispos, o Sumo Pontífice recordava alguns trechos do segundo capítulo da Lumen Gentium e diz que “a Igreja não é uma elite de sacerdotes, consagrados, bispos, mas que todos formamos o Santo Povo fiel de Deus”. Nessa carta, o Papa recordou o valor do Laicato e combate o clericalismo na América Latina.
Lembrava nessa carta a imagem da Igreja como Povo de Deus, tirada do documento conciliar. Dizia assim o Papa Francisco: “É precisamente desta imagem que gostaria de começar a nossa reflexão sobre a atividade pública dos leigos no nosso contexto latino-americano. Evocar o Santo Povo fiel de Deus é evocar o horizonte para o qual somos convidados a olhar e sobre o qual refletir. É para o Santo Povo fiel de Deus que como pastores somos continuamente convidados a olhar, proteger, acompanhar, apoiar e servir. Um pai não se compreende a si mesmo sem os seus filhos. Pode ser um ótimo trabalhador, profissional, marido, amigo, mas o que o torna pai tem um rosto: são os seus filhos. O mesmo acontece a nós, somos pastores. Um pastor não se compreende sem um rebanho, que está chamado a servir. O pastor é pastor de um povo, e o povo deve ser servido a partir de dentro. Muitas vezes vamos à frente abrindo caminho, outras voltamos para que ninguém permaneça atrás, e não poucas vezes estamos no meio para ouvir bem o palpitar do povo”.
Em primeiro lugar vem a igualdade fundamental de todos os batizados, e posteriormente em segundo plano as diferenças entre hierarquia e laicato. A noção da Igreja como Povo de Deus exerceu um monopólio no pós-concilio, tomando, definitivamente, o lugar do Corpo Místico de Cristo. A eclesiologia adquiriu uma impostação decididamente histórico-salvífica, conforme a reflexão pós-conciliar, havendo uma excessiva concentração em torno da noção da Igreja como Povo de Deus. As outras imagens que se encontram nos números 6 e 7 da Lumen Gentium foram esquecidas, havendo um desequilíbrio com graves consequências[1].
A imagem Povo de Deus não é a definição da Igreja, mas uma descrição, que deve estar interligada com o mistério da Igreja. A leitura parcial, leva a erros eclesiológicos. A eclesiologia do Povo de Deus entende uma igreja do povo, com emanação de uma base autônoma e configurada por princípios puramente sociológicos e não por princípios postos pelo seu fundador. O sínodo de 1985 colocou em relevo a unidade dos dois primeiros capítulos da Lumen gentium, porque sua separação resultaria a uma socialização da Igreja, enquanto seu mistério seria esquecido.
*Padre Gerson Schmidt foi ordenado em 2 de janeiro de 1993, em Estrela (RS). Além da Filosofia e Teologia, também é graduado em Jornalismo e é Mestre em Comunicação pela FAMECOS/PUCRS.
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[1] HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. Concilio Vaticano II, 40 anos da Lumen Gentium, vv. aa., Edipucrs, , Porto Alegre, 2005, p.111.