Por Alice Maciel – publicada originalmente em Agência Pública
Depois de 16 dias enfrentando pandemia, frio e violência policial para protestar contra “PL da morte”, indígenas retornam de Brasília sem serem ouvidos por deputados
O clima no acampamento dos indígenas localizado ao lado do Teatro Nacional, em Brasília, na noite desta quarta-feira, é de tristeza, decepção e revolta. Comovida, uma das principais lideranças dos povos indígenas no Brasil, Sônia Guajajara, me respondeu ao pedido de entrevista com um abraço. Também muito emocionada, a coordenadora-geral da mobilização, que ganhou o nome de “Levante pela Terra”, Isabel Tukano, precisou de um tempo para encontrar as palavras diante do que aconteceu. “Tantos parlamentares que estão falando bonito, em prol do país, mas infelizmente são os traidores da pátria, esses são os genocidas também. É muita revolta, muita”.
Momentos antes, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados havia aprovado, para trâmite no plenário, o Projeto de Lei 490/2007, sem que os indígenas fossem sequer ouvidos. Um final dramático para os mais de 800 indígenas de 40 povos de todas as regiões do Brasil que há 16 dias estão na capital federal para lutar contra a proposta, que ameaça a demarcação de terras indígenas – paralisadas desde o início do governo Bolsonaro – e abre as portas destes territórios para empreendimentos agropecuários, hidrelétricas, mineração, estradas e o garimpo. Ela faz parte de um pacote de medidas defendidas pelo governo federal contra o direito constitucional dos povos indígenas e irá intensificar os conflitos pelas terras.
O coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), Kretã Kaingang, destacou que “a guerra continua”. “Nós perdemos só uma batalha”, acrescentou. A deputada Joênia Wapichana (Rede/RR) passou por volta das 18h30 no acampamento e também convocou os indígenas para continuarem se mobilizando. “Essa luta não termina hoje, a luta continua e nessa luta ninguém solta a mão de ninguém”. Em resposta, os indígenas gritaram “Joenia não está sozinha”. Os indígenas também comemoraram a saída do ministro Ricardo Salles do Ministério do Meio Ambiente.
Muitas delegações retornam hoje para seus territórios. Para chegar até a capital federal eles enfrentaram até três dias de viagem de ônibus, sofreram ameaças de garimpeiros, estão sob o risco de serem contaminados pela Covid, passaram calor e frio nas barracas de lonas instaladas ao lado do Teatro Nacional. Uma luta árdua pelos seus direitos – garantidos na Constituição Federal -, mas também pelo direito de todos os brasileiros, conforme alertam, pois são os indígenas os melhores guardiões das florestas, com taxas de desmatamento significativamente mais baixas do que nas áreas fora de seus territórios, como apontou um relatório da ONU de março deste ano.
“O que afeta a nossa aldeia, afeta a cidade também, então todos estão ligados à destruição porque não vai afetar só os povos indígenas, a sociedade brasileira também vai sentir o impacto, como está sentindo. A gente está avisando, a gente está dizendo, mas infelizmente muitos são cegos e surdos que se trancam no ar condicionado, acham que o mundo está bem enquanto a gente está morrendo, brigando”, alertou a líder indígena, Alessandra Korap que é Munduruku do médio Tapajós.
Seu povo do alto Tapajós, em Jacareacanga, está sendo fortemente atacado por garimpeiros que tentaram até mesmo impedir que as lideranças locais chegassem a Brasília. O ônibus que iria buscar a comitiva teve os pneus furados e o motorista foi ameaçado: se não saísse da cidade o veículo, que estava vazio, seria queimado. Ediene Kirixi contou que desde o dia 9 eles tentam sair do município paraense, mas devido à pressão dos garimpeiros, só chegaram dia 17 no acampamento. Foram três dias de viagem.
O Projeto de Lei 490/2007 está desde o dia 8 de junho na pauta da CCJ que é presidida pela deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL/SP). Desde então, nos dias que tiveram sessão, os indígenas se manifestaram com rituais de canto e dança no estacionamento do Anexo 2 da Casa legislativa, local mais próximo do plenário onde ocorrem as reuniões. A Agência Pública acompanhou cinco dias da mobilização e não presenciou nenhuma violência e nem tentativas de invasão por parte dos indígenas, ao contrário do que afirmou o presidente da Câmara, deputado federal Arthur Lira (PP/AL).
Violência contra os indígenas
A proposta estava prevista para ser votada ontem (22/06)- após esgotadas as possibilidades de obstrução dos deputados de oposição ao projeto para adiar a decisão – mas a sessão foi encerrada depois de um ataque da Polícia Militar contra os indígenas. Os policiais usaram bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha para dispersar a manifestação.
No dia 23/06 os manifestantes retornaram ao Anexo 2 da Câmara, mas dessa vez não foram atacados pela polícia. No momento que foi iniciada a votação na CCJ, muitos policiais chegaram ao local, além dos que já estavam desde cedo. Os indígenas se sentiram intimidados e decidiram voltar para o acampamento.
De acordo com informações da APIB, três pessoas ficaram feridas na quarta-feira e outras dez passaram mal, incluindo crianças e idosos. “Eles querem nos culpar. Já está circulando em várias mídias que há policiais feridos, mas não contabilizam os indígenas feridos, não apontam a truculência do Estado representado pelos policiais. É doloroso ver um parente caído no chão e mesmo caído no chão ele é alvejado com bala de borracha. Teve que uma mulher deitar sobre ele para ele não ser mais alvejado e ela foi alvejada. Ela serviu de escudo para o parente que estava desmaiado”, relatou o coordenador executivo da Apib, Dinamizam Tuxa.
Segundo a Associação, um jovem de 26 anos, do povo Sapará, de Roraima, foi atingido por balas de borracha no torso e bombas de efeito moral nas costas. Uma senhora do povo Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, foi atingida por estilhaços de bomba e desmaiou durante o ataque. O terceiro ferido, do povo Xokleng, da Região Sul, foi atingido pelo impacto de uma bomba de efeito moral.
“O indígena que é dono dessa terra. Todo mundo sabe que o Brasil nasceu de um estupro e nós resistimos até hoje, 521 anos e quando nós chegamos na Casa do povo a gente é recebido com gás de pimenta no rosto, ao invés de chamar a gente para conversar. O indígena só quer viver em paz. Ele quer selva para caçar e quer o rio para pescar porque ele é um índio guerreiro” disse a indígena Luakam Anambé que afirmou ter passado mal com as bombas de gás lacrimogêneo.
A Polícia Militar e a Câmara dos Deputados informaram, por meio de nota, que os indígenas derrubaram os gradis da entrada do edifício e os jogaram contra os policiais legislativos. Eles alegam ainda que os índios arremessaram pedras e flechas nos policiais. “Um policial militar foi atingido por uma flechada no pé. Dois policiais legislativos também foram vítimas das flechadas. Um foi atingido na perna e o outro no tórax. Os três foram socorridos pelo serviço médico do Congresso”, acrescenta a nota da PM. A atuação dos policiais foi defendida por Arthur Lira.
No dia 16 os indígenas também foram recebidos com bombas de gás lacrimogêneo na Fundação Nacional do Índio (Funai), entidade que tem como premissa defendê-los.
“Nós não viemos aqui para guerrear fisicamente, nós viemos para guerrear pelos nossos direitos. Esse PL, as pessoas não estão tendo a dimensão do assassino que ele é porque ele não só vai acabar com os indígenas, ele vai acabar também com a vida de vocês que não são indígenas, com nossas matas, com nossas águas. Nós estamos aqui para defender vidas, defender nossos territórios para que no futuro nossos filhos e netos tenham o direito de viver”, afirmou Tamikuã Pataxó Faustino. “O sentimento hoje é de tristeza, de decepção porque nós viemos aqui para lutar e sair vitoriosos, mas infelizmente a visão desses deputados não é a mesma que nós temos”, acrescentou.
Ela chegou em Brasília no dia 7, com a primeira delegação de “70 guerreiros” que vieram do Sul e Sudeste. “Nós chegamos aqui sem nada, só com a roupa do corpo. Nós viemos em 70 guerreiros para dar início ao acampamento para poder receber os guerreiros que iam chegar de outros estados”, contou.
Relator do projeto é ruralista
De autoria do deputado Homero Pereira, falecido em 2013, o PL já recebeu 13 projetos apensados. O texto teve parecer favorável do relator Arthur Maia (DEM/BA), que é membro da bancada ruralista. Maia possui duas fazendas, 313 cabeças de gado, 50 cavalos mangas largas e quotas da Sociedade Agrícola Real, conforme prestação de contas apresentada ao Tribunal Superior Eleitoral.
A proposta, que prevê alterações no Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), transfere da União para o Congresso a prerrogativa de demarcar terras indígenas. O texto também insere no Estatuto a tese do Marco Temporal que reconhece o direito à terra somente de povos que ocupavam o território até a promulgação da Constituição de 1988 e barra a ampliação da terra indígena já demarcada. O projeto de lei elimina a consulta livre prévia às comunidades afetadas e permite a implantação de hidrelétricas, mineração, estradas entre outros empreendimentos. O PL 490 também coloca em risco a política de “não contato” com os indígenas isolados ao prever a hipótese de contato por “interesse público”, que poderia ser intermediado por “empresas públicas ou privadas” contratadas pelo Estado.
“Esse projeto 490 vai desfigurar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ele vem se arrastando desde 2007, teve rejeição pela Comissão de Direitos Humanos em 2009 e desde 2009 não foi pautado porque tem vícios”, destacou a deputada federal Joênia Wapichana. “É absurdo inconstitucional, que essa Casa, que a Comissão de Constituição e Justiça, que deveria prezar pela Constituição, ter o pensamento de acelerar essa desconfiguração dos direitos constitucionais”, acrescentou. A Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) produziu uma nota técnica em que analisa o texto. “Além de uma grande quantidade de dispositivos inconstitucionais, a análise aponta que o PL 490 afronta decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, observa a entidade.