A esperança do pecador

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Os Evangelhos de São Lucas e São João mostram ao vivo, com detalhes cheios de sugestão, o estado de ânimo dos Apóstolos, ao anoitecer do dia da Páscoa, quando eram cada vez mais intensos – e confusos – os rumores dos que diziam que tinham visto Jesus vivo (Cf. Lc 24,36-49 e Jo 20,19-23).

Jesus ressuscitado acabava de estar com os discípulos de Emaús. Estes, quando Jesus os deixou, voltaram correndo, afogueados, a Jerusalém – ao Cenáculo – para contar a todos a grande notícia: como o tinham encontrado no caminho e como o haviam reconhecido ao partir o pão (Cf. Lc 24,35).

Os Apóstolos (todos, menos Judas, já morto, e Tomé, que andava ausente), e mais alguns discípulos – mulheres e homens -, acolheram-nos agitados, alegres e, paradoxalmente, ainda perplexos. Já eram vários os que falavam de que Cristo vivia – Ressuscitou, diziam, e apareceu a Simão! -; já se lhes ia acendendo no coração, como uma chama vacilante, a esperança, mas o sentimento dominante da maioria ainda era o medo. E é sobre este medo que agora vamos meditar. Pode dar-nos luzes boas, a nós que também conhecemos esta chama vacilante que oscila entre o medo e a esperança.

O que nos conta o Evangelho? São João, falando desse fim de tarde do Domingo da Páscoa, começa por dizer que, ao anoitecer do mesmo dia, que era o primeiro da semana, os discípulos tinham fechado as portas do lugar onde se achavam, por medo dos judeus (Jo 20,19). Esta é a primeira coisa que comenta, para nos situar no ambiente: estavam trancados no Cenáculo, naquele quarto de cima (Cf. Lc 22,12) onde Jesus instituíra a Eucaristia, porque tinham medo: temiam, e com razão, que os mesmos que tinham acabado com Jesus quisessem acabar com eles, seus discípulos. Quem não teria medo de sofrer a mesma sorte do Mestre, odiado, perseguido e crucificado?

A verdade é que todos nós, nas mesmas circunstâncias, sentiríamos a mesma coisa. Mas, por mais que compreendamos e desculpemos os discípulos, não devemos esquecer que esse medo surgiu e cresceu sobre um vácuo de esperança, uma falha que poderia não ter existido, e que, por isso, desagradou a Nosso Senhor. Se não fosse assim, Jesus teria sido injusto ao recriminar, primeiro aos de Emaús e depois a todos eles, o fato de terem sido obtusos e lentos em crer no que Ele próprio lhes dissera pelo menos três vezes, bem claramente: que era necessário que o Filho do Homem padecesse muitas coisas (Mc 8,31), que era necessário que fosse levado à morte e que ressuscitasse ao terceiro dia (Lc 9,22).

Por que estais perturbados?

São Lucas, por sua vez, diz que, enquanto os de Emaús ainda falavam com os demais no Cenáculo – estando as portas bem trancadas -, Jesus apresentou-se no meio deles e disse-lhes: “A paz esteja convosco!”. Perturbados e atemorizados [o medo continuava], pensaram estar vendo um espírito [tão longe estavam de ter certeza da Ressurreição]. Mas Ele disse-lhes: “Por que estais perturbados e por que surgem tais dúvidas nos vossos corações?” (Lc 24,36-38).

Como é humano o Evangelho! Como num filme realista, mostra-nos os pobres Apóstolos aturdidos pela surpresa inaudita de verem Jesus no meio deles. Era algo tão fantástico, que lhes parecia impossível, e tremiam de medo de que não fosse verdade, de que seus sonhos tornassem a cair outra vez no chão, despedaçados, como lhes acontecera nas horas trágicas da Paixão.

Por isso, Jesus, cheio de carinho e de compaixão por aquelas crianças-grandes, meio perdidas, deu-lhes provas capazes de “arrasar” quaisquer dúvidas, para que vissem que tudo era verdade e abrissem as portas da alma, para que nela entrasse a alegria. ”Por que surgem – disse-lhes – tais dúvidas nos vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo. Apalpai e vede, que um espírito não tem carne nem ossos, como verificais que Eu tenho”. Dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e os pés (Lc 24,38-40).

E eles, vendo-o, tiveram uma reação tão humana! Como a da mãe, que recupera o filho que julgava perdido, e, de tão feliz, nem consegue acreditar que aquilo seja verdade; custa-lhe crer que possa haver neste mundo uma alegria tão grande! Diz o Evangelho: E, como, na sua alegria, não queriam acreditar, de tão assombrados que estavam, Ele perguntou-lhes: “Tendes aí alguma coisa que se coma?” Então, ofereceram-lhe um pedaço de peixe assado; e, tomando-o, comeu diante deles (Lc 24,41-43).

É maravilhosa esta cena. Ver Cristo glorioso comendo um pedaço de peixe assado na frente de todos! Como olharia para eles, enquanto comia! Como eles o olhariam embasbacados, vendo-o comer! Não falta nesta cena aquela ponta de alegria bem-humorada que caracteriza Jesus após a Ressurreição. Como Jesus é humano! E como é divino, na grandeza do seu Amor!

O medo bom e o medo mau

Vale a pena aprofundarmos um pouco no que esta cena da Ressurreição nos sugere a respeito do medo e da esperança. Quem conhece o Evangelho, sabe que Jesus falou várias vezes aos Apóstolos sobre o medo. Poderíamos lembrar várias passagens.

Talvez a mais interessante, porém, seja aquela em que Jesus deu aos Apóstolos uma bela lição, para que aprendessem a “temer” direito, a temer “bem”, coisa que não é nada fácil. Porque se pode ter um medo bom ou um medo mau, um medo certo ou um medo errado. Essa lição, deu-a Jesus numa ocasião em que estava falando da Providência de Deus nosso Pai. Explicou-lhes, então, com carinho: Digo-vos a vós, meus amigos: não tenhais medo daqueles que matam o corpo e depois disso nada mais podem fazer. Eu vos mostrarei a quem deveis temer: temei aquele que, depois de matar, tem o poder de lançar no inferno; sim, eu vo-lo digo: temei a este (Lc 12,4-5).

A seguir, tranquilizou-os, dando-lhes a certeza de que podiam esperar tudo da bondade de Deus, de tal modo que a esperança vencesse sempre o temor: Não se vendem cinco pardais por dois vinténs? E, entretanto, nem um só deles passa despercebido diante de Deus. Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais, pois. Vós valeis mais do que muitos pássaros (Lc 2,6-7).

É importante não perder de vista os “dois medos” de que Jesus fala: o que um filho de Deus não deve ter e o que todos devemos ter.

Há uma coisa comum a todos os medos: o receio de perder algo que amamos. Santo Tomás de Aquino, com muita acuidade, diz que “todo o temor nasce do amor”. E Santo Agostinho, mais poético, diz que o medo é “o amor em fuga” (o amor que quer fugir daquilo que lhe pode roubar o seu bem, ou seja, aquilo que ama). Assim, quem ama o dinheiro e acha que é o maior bem da sua vida, tem pavor de perder o dinheiro. Quem ama muito a esposa ou o marido e os filhos – seu maior bem na terra -, treme de medo de perdê-los. E quem ama a Deus sobre todas as coisas teme mais do que tudo perdê-lo eternamente ( este é o santo temor de Deus).

Quer dizer que os nossos medos são como que a sombra dos nossos amores. Se eu descubro o que é que mais temo perder, perceberei o que mais amo na vida. Isto faz lembrar aquele delicioso braço-de-ferro que se deu entre São Luís, rei da França, e o chefe do seu exército, Joinville, senescal da Champagne, contado por este último na sua crônica biográfica sobre o santo rei.

São Luis disse certa vez a Joinville que preferia cem vezes mais ficar leproso a cometer um só pecado mortal. Joinville, muito franco e desbocado, retrucou dizendo que preferia cometer cem pecados mortais antes que ficar leproso. E São Luis ficou tão aflito que naquela noite não dormiu e, no dia seguinte, chamou Joinville e, muito mansamente, lhe fez ver que a lepra acaba quando morre o corpo, mas que o pecado mortal pode acompanhar a alma no inferno por toda a eternidade.

É exatamente neste sentido que Jesus nos diz que não temamos o que nos pode fazer perder os bens efêmeros, e, pelo contrário, temamos o que nos pode fazer perder os bens eternos.

Os bens efêmeros e os bens eternos

Normalmente, nós fazemos o contrário do que Jesus nos ensina. Horroriza-nos perder a saúde corporal, mas não nos horroriza perder a saúde espiritual (o pecado mortal, que tanto preocupava São Luís da França). Os pais, com frequência, fazem como Joinville; pensam que, para o filho, é cem vezes pior o risco de não entrar na faculdade do que o risco de não entrar no Céu. Por isso, acham importantíssimo que estudem horas e horas – o que está certo –, mas não ligam se os filhos não dedicam a Deus sequer a hora semanal da Missa, e não se confessam nem uma vez por ano, e não levam nem um pouquinho a sério o sexto e o nono mandamento da Lei de Deus.

E, no entanto, os bens efêmeros sempre nos deixam o coração angustiado, porque, mesmo quando parecem mais seguros, inquieta-nos o medo de perdê-los, uma vez que todos eles são bens que mudam ou podem mudar (por exemplo, a fortuna ou a amizade), que morrem ou podem morrer (amigos, parentes, nós mesmos), que enganam ou podem enganar (qualquer ser humano, pecador como nós, pode iludir-nos), que frustram ou podem frustrar (como muito sonhos conquistados que depois nos decepcionam)… Por isso, é loucura pôr neles todas as esperanças da vida!

Todos sabemos – apesar de que preferimos não pensar – que a doença, o desemprego, a falência, a perseguição, a morte, toda sorte de “contrariedades” e “desgraças” podem roubar-nos esses bens. Mas esquecemos que ninguém –a não ser nós mesmos – pode roubar-nos os bens eternos, se nos esforçamos por viver no amor de Deus. Quem nos separará do amor de Cristo? – dizia São Paulo, num santo desafio. – A tribulação? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada? […] Mas, em todas essas coisas somos mais que vencedores pela virtude daquele que nos amou. E conclui dizendo que não existe poder nem força nos céus, na terra e nos abismos que nos possa separar do amor de Deus em Cristo Jesus Senhor nosso (Cf. Rom 8,35-39). Só o nosso pecado!

É um grande cântico à esperança esse de São Paulo! Foi desse teor o que entoaram os mártires, espoliados e desenganados de tudo na terra, mas que caminhavam para a morte cantando, com a esperança de receberem o abraço eterno de Deus.

Entendemos o que são os “bens eternos”?

Vamos pensar um pouco mais, e descobriremos um panorama ainda mais belo. Comecemos perguntando-nos: quais são os bens eternos?

Numa primeira resposta, imediata, diríamos: a Vida eterna, o Céu, que é a visão e a posse amorosa de Deus – supremo Bem e soma de todos os bens – para sempre. E talvez acrescentássemos que também são bens eternos as coisas que nos santificam e nos encaminham para o Céu, como a oração, as Confissões e Comunhões bem feitas, os sacrifícios e penitências oferecidos a Deus com sinceridade e devoção.

Tudo isso é verdade, mas, se ficássemos só nisso, não acabaríamos de entender o que Cristo nos ensinou. Neste sentido, são muito esclarecedoras as seguintes palavras de Jesus: Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça corroem, onde os ladrões furam e roubam. Ajuntai para vós tesouros no Céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consomem, e os ladrões não furam nem roubam (Mt 6,19-20).

Cristo fala-nos de ir juntando, ao longo da vida, muitos tesouros no céu, que jamais nos serão roubados, que não serão efêmeros, mas eternos. E, quais são esses tesouros? Todos os nossos pensamentos, palavras, ações, iniciativas, empreendimentos, trabalhos, divertimentos, conversas, alegrias, etc., etc., que – praticados por nós com a alma em estado de graça – estiverem de acordo com a vontade de Deus, e forem marcados pela retidão e, sobretudo, pelo amor a Deus e ao próximo.

É muito esclarecedor o que Jesus diz sobre o grande valor que pode ter um simples copo d’água: Todo aquele que der ainda que seja somente um copo de água fresca a um destes pequeninos, por ser meu discípulo, em verdade vos digo, não perderá a sua recompensa (Mt 10,42). Quer dizer que tudo o que for bom e reto, tudo o que não for egoísta, por pequeno que seja, se é vivido com amor (a Deus e aos nossos irmãos) passa a ser um bem eterno, que a morte não poderá levar. Jesus frisa especialmente as boas obras, as obras de misericórdia feitas em favor dos necessitados: Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber […] Todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes. É bonito perceber que, vivendo assim, agindo retamente, com coração grande, tornamos eterno pelo amor tudo o que fazemos!

De fato, se vivêssemos deste modo, que medo poderíamos ter? É inevitável, certamente, o medo psicológico instintivo (pura reação emocional), que nos acomete diante de um perigo, um assalto, uma doença grave, uma incerteza… Mas o cristão pode superar esse temor graças à virtude da esperança, coisa que o descrente não pode fazer. Pode superar isso, porque a esperança cristã (virtude teologal) nos garante, com absoluta certeza, duas coisas:

Primeira, que Deus é tão bom que faz concorrer tudo para o bem daqueles que o amam (Rom 8,28), absolutamente tudo.

Segunda, que, se lhe formos fiéis, o sorriso de Cristo estará aguardando-nos, por assim dizer, junto da porta escancarada da casa do Pai, para nos oferecer uma felicidade indestrutível, eterna, um Amor sem fundo e sem fim. Eu vou preparar-vos um lugar… Quero que onde estou, estejais vós comigo… Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo ( Cf. Jo 14,2-4; Jo 17,24; Mt 25,34).

Aconteça o que acontecer, pois, se tivermos fé, esperança e amor (ou seja, se formos cristãos), perceberemos que Jesus está sempre ao nosso lado e sempre nos diz: A paz esteja convosco; sou Eu, não tenhais medo (Cf. Lc 24,36.38-39).

É lógico, portanto, que, ao meditarmos sobre o mistério da Páscoa, demos graças a Jesus porque, com a sua Ressurreição, conquistou para nós a vitória sobre o medo, porque substituiu o nosso medo pela grande esperança, essa belíssima virtude, que é o perfume e o incentivo da alma dos que ainda caminhamos na terra rumo à Casa do Pai.

Fonte: Padre Francisco Faus – adaptação de um capítulo do livro de F. Faus: Cristo, minha esperança

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