Por Dom Antônio de Assis Ribeiro
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém (PA)
Na visão popular a amizade está sempre conectada à alegria, à festa, ao prazer, ao lazer, à diversão, à aventura, ao companheirismo, ao apoio nas horas imprevistas. Contudo, na era do “amor líquido” (Zygmunt Bauman, 2003), sem forma, sem critérios, sem compromissos, sem parâmetros, egoísta, consumista, hedonista e narcisista que tem como meta o puro “haurir satisfação”, é justo refletirmos sobre a importância da dimensão ética da amizade.
A experiência da amizade autêntica tem conteúdos que vão bem além dessas experiências prazerosas. A origem da amizade está vinculada ao Amor que é inseparável da verdade, da justiça, do respeito, da bondade, da honradez. Logo, por sua própria natureza, a amizade está relacionada ao bem. É por isso que na Bíblia Sagrada há uma forte sensibilidade para com a experiência da amizade e até afirma: “Amigo fiel é proteção poderosa, e quem o encontrar, terá encontrado um tesouro. Amigo fiel não tem preço, e o seu valor é incalculável. Amigo fiel é remédio que cura, e os que temem ao Senhor o encontrarão. Quem teme ao Senhor tem amigos verdadeiros, pois tal e qual ele é, assim será o seu amigo” (Eclo 7,15-17).
Certa vez, estive num presídio conversando com o grupo de mais ou menos sessenta encarcerados. Visto que nos conhecíamos, pois os visitava com frequência por causa das atividades da pastoral carcerária, numa roda de conversa falando sobre a liberdade e responsabilidade, lhes perguntei: por que você está aqui encarcerado? A participação naquela roda de conversa foi excelente. Mas uma coisa me chamou atenção: a maioria disse que estava ali por causa de um amigo porque foi incentivado ou colaborou para a promoção de um crime. Esse fato nos estimula a aprofundar a dimensão ética da amizade.
- O dinamismo do eros, filia e ágape
Na cultura grega havia três concepções de amor: eros, philia e ágape. O eros é o amor que se manifesta através da atração física, sensual, sexual, passional, instintiva; o eros é vorraz, devorador, impaciente, aprisionador! Mas é frágil porque está limitado à sensualidade e ao prazer. Ao centro do dinamismo do eros não está o outro, mas o “eu” sedento de desejos. No eros desaparece a dimensão ética, porque sua paixão maior é a autossatisfação.
O amor philia é o vínculo de bem-querer que entrelaça os parentes e aqueles que tem afinidade entre si. A filia é a amizade! Desse nível de Amor emerge, sem dúvida, uma profunda dimensão ética. Da Amizade brotam uma série de virtudes e atitudes tais como: o cuidado, a proteção, o respeito, a reciprocidade, a busca da segurança, o senso de honestidade, de autenticidade, a transparência, a solidariedade, a partilha, a justiça, a confiança, a fidelidade etc. Portanto, nunca a amizade é moralmente neutra, ou seja, não é coerente que alguém diga que é amigo do outro, mas lhe é indiferente, negligente, injusto, incorrespondente, insensível, violento, falso, desonesto e lhe promovendo inconvenientes etc. Diz São Paulo que o amor nada faz de inconveniente e não é interesseiro (cf. 1Cor 13,4-6).
Apesar disso, a experiência da amizade, a filia, tem como limite o vínculo afetivo e a reciprocidade, ou seja, não há a experiência da gratuidade e da transcendência no cuidado com os outros que não fazem parte do grupo dos seus parentes e amigos. Tais atitudes fazem parte da expressividade do dinamismo do ágape, que é o amor materno, desinteressado, livre, gratuito, sem fronteiras, incondicional, transbordante. É o amor divino! Apesar do ágape abraçar todas as virtudes da filia (amizade), não se deixa limitar pela condição da reciprocidade.
- A amizade é benevolente e benfazeja
Quem ama quer sempre o bem e por isso, faz o bem ao outro e jamais deliberadamente o prejudica. O amor, por sua própria natureza, só faz o bem. Por isso, a experiência da amizade é sempre edificante e humanizante. Isso significa que a autêntica amizade é uma relação que promove os sujeitos envolvidos tornando-os corresponsáveis uns pelos outros.
Tanto o amor de amizade (filia) quanto o amor ágape (a caridade) tem uma profunda dimensão ética. Ao contrário, somente o eros é concentrado em si mesmo e egocêntrico. Aquele que viveu em plenitude o amor ágape, a misericórdia, chamou os seus discípulos de amigos (cf. Jo 15,15). Dessa forma Jesus estava dizendo a seus discípulos que quem ama tem o direito de ser correspondido.
A experiência da amizade e da Caridade contribuem para a educação do indivíduo, leva-o a descentralizar-se, a crescer na sua dimensão socioafetiva, a superar o critério erótico (da pura atração) e a fazer a experiência da empatia e da compaixão; a amizade nos ajuda a olhar para os outros e nos educa para o cuidado, reciprocidade, respeito pela dignidade do outro. Porém, na parábola do Bom Samaritano a Caridade é exaltada, sendo colocada como referência desafiadora para os discípulos de Jesus por causa da gratuidade sem fronteiras. De fato, o bom samaritano não era amigo daquele que estava caído, não o conhecia, era um estranho. Mas cuidou dele porque reconheceu sua dignidade ferida e, sentindo compaixão e cheio de espírito de iniciativa, mudou seus interesses, sacrificou sua agenda dedicou-lhe tempo para cuidar dele e pagou a conta. Por isso, ao final Jesus diz ao fariseu que o interrogou: “vai e faça a mesma coisa” (Lc 10,37). A caridade supera as fronteiras da Amizade.
- A dimensão educativa da Amizade e da Caridade
Tanto a amizade quanto a Caridade tem um compromisso educativo com o outro. Ou seja, não basta que o outro seja beneficiário, ele também deve ser educado para ser benfeitor. Faz parte da dimensão ética da amizade e da caridade, a experiência da autoeducação e educação de quem é beneficiário do nosso amor, porque a meta da amizade e da caridade é a promoção da plena dignidade humana. Isso comporta um processo pelo qual se estimula o desenvolvimento da liberdade e da vontade (superando o instinto), da responsabilidade, da ternura, da compaixão, da gratuidade, da generosidade, do exercício do espírito de sacrifício pelo bem dos outros. Então, os amigos se educam, crescem juntos, se firmam no amor e na verdade, na justiça e na honestidade. Amigos que fazem o mal são comparsas.
A dimensão educativa da Amizade e da Caridade nos educa para a responsável gestão dos nossos impulsos e paixões, dos nossos gostos e preferências, sentimentos e emoções, levando-nos sempre a colocar como critério principal das nossas escolhas o bem do outro. São Paulo recomenda que cada um não busque a realização dos seus interesses, mas os dos outros (cf. 1Cor 10,33; Fl 2,4). “Portanto, busquemos sempre as coisas que trazem paz e edificação mútua” (Rm 14,19). Isso é maravilhoso para a experiência da amizade.
No horizonte da dimensão ética da amizade e da caridade, está também o compromisso permanente do discernimento entre os amigos, do compromisso com a verdade, da defesa incondicional do bem e da honestidade, da prática da não violência em palavras, gestos e atitudes em todas as circunstâncias entre si e com os outros.
Outra experiência significativa também, diz respeito à questão para com a palavra dada; para os amigos não se mente e, incondicionalmente, se preserva as confidências por causa da sagrada confiança. Essa palavra dada pode estar relacionada também à questão econômica, no que se refere à empréstimos; quantas pessoas romperam suas amizades por causa de empréstimos de bens materiais não devolvidos ou de dinheiro não restituído, que acabaram gerando graves prejuízos ao outro. O calote não faz parte da dinâmica da amizade, porque é um ato desonesto e injusto; doação é doação, mas empréstimo é empréstimo; requer o cumprimento da restituição! Quem não honra a palavra dada com seus amigos, está promovendo o risco de perdê-los; assim não mais poderá contar com eles em outras necessidades.
PARA A REFLEXÃO PESSOAL:
- Por que pouco refletimos sobre a dimensão ética da Amizade?
- Você já perdeu algum amigo por causa da ruptura da confiança ou de empréstimos não pagos? Como foi a experiência?
- Em que a experiência da Amizade e Caridade nos educam?
Fonte: CNBB Norte2